quinta-feira, 27 de setembro de 2007

O que são Instituições Sociais
"Quando se observa qualquer grupo social estável e de existência duradoura - seja a família, seja a Igreja, a escola ou uma empre-sa -, verifica-se que eles subsistem graças à existência de regras e procedimentos padro-nizados, cujo objetivo fundamental é manter a coesão interna do grupo e satisfazer certas ne-cessidades da sociedade da qual ele faz parte,
As estruturas sociais estáveis (ou formas de organização) baseadas em regras e procedi-mentos padronizados, socialmente reconheci-dos, aceitos, sancionados e seguidos pela so-ciedade são denominadas instituições sociais.
Assim, instituição é toda forma ou estrutura social instituída, constituída, sedimentada na so-ciedade. São os modos de pensar, de sentir e de agir que a pessoa, ao nascer, já encontra es-tabelecidos e cuja mudança se faz lentamente, muitas vezes com dificuldades. As instituições são formadas para atender a necessidades so-ciais de uma sociedade. Elas servem também de instrumento de regulação e controle das atividades dos membros dessa sociedade.
No estudo das instituições sociais, dois as-pectos devem ser levados em conta: as dife-renças entre grupo e instituição e a interde-pendência entre as instituições.
Grupo social e instituição social
Apesar de dependerem um do outro, grupo e instituição são duas realidades distintas.
Os grupos sociais são reuniões de indivíduos com objetivos comuns, envolvidos num pro-cesso de interação mais ou menos contínuo. Já as instituições sociais se referem a regras e pro-cedimentos que se aplicam a diversos grupos.
Por exemplo: o pai, a mãe e os filhos formam um grupo primário; as regras e os procedimen-tos que regulamentam essa relação fazem par-te da instituição familiar. Isso significa que as mesmas regras e normas de conduta de uma família valem para todas as famílias de uma de-terminada sociedade, já que elas assumem um caráter institucional.
Outro exemplo. Os membros de uma em-presa constituem um grupo social formado por acionistas, administradores, prestadores de ser-viços e empregados. As relações entre essas pessoas são reguladas por leis, regras e pa-drões que objetivam fazer a empresa funcionar e dar lucro aos proprietários. Essas normas caracterizam a instituição económica, pois seus preceitos são igualmente aplicados em todas as empresas.
Interdependência entre as instituições
Vamos começar com um exemplo. A escravidão era uma instituição que existiu no Brasil até 1888. Com a libertação dos escravos, as instituições econômicas do país sofreram pro-fundas transformações: deixou de haver traba-lho escravo e os trabalhadores passaram a re-ceber salário. Como resultado, as instituições familiar, religiosa e educacional foram igual-mente afetadas por essa mudança institucional e tiveram de reorganizar seu sistema de síaíus, seus padrões de comportamento e suas nor-mas jurídicas em relação aos ex-escravos.
O exemplo mostra que uma instituição não existe isolada das outras. Há entre elas uma re-lação de interdependência, de tal forma que qualquer alteração em determinada instituição pode acarretar mudanças maiores ou menores nas outras.
Principais tipos de instituição
As principais instituições sociais são: a família, o Estado, as instituições educacionais, a Igreja e as instituições económicas.
A família
Embora as normas sociais institucionaliza-das determinem as regras de funcionamento
da instituição familiar, cada família tem ainda suas próprias normas de comportamento e con-trole. Em cada grupo familiar, seus integrantes se reconhecem biológica e culturalmente, porque cada família tem uma cultura particular. Grupo primário de forte influência na formação do indivíduo, a família é o primeiro corpo social no qual os indivíduos convivem.
É um tipo de agrupamento social cuja es-trutura varia em alguns aspectos no tempo e no espaço. Essa variação pode se referir ao nú-mero e à forma do casamento, ao tipo de fa-mília e aos papéis familiares.
Número de casamentos
Quanto ao número de casamentos, a fa-mília pode ser monogâmica ou poligâmica.
  • A família monogâmica é aquela em que ca-da marido e cada mulher tem apenas um cônjuge, quer essa relação seja estabelecida por uma aliança indissolúvel (até à morte), quer se admita o divórcio (como é o caso da nossa so-ciedade). A lei brasileira permite um novo casa-mento após o término do casamento anterior.
  • A família poligâmica é aquela em que cada esposo pode ter dois ou mais cônjuges. Ao casamento de uma mulher com dois ou mais ho-mens dá-se o nome de poliandria. Esse tipo de família existe, por exemplo, entre as tribos do Tibete e entre os esquimós. O casamento de um homem com várias mulheres chama-se poliginia. Essa prática pode ser encontrada entre certas tribos africanas, entre os mórmons e en-tre os povos que seguem a religião muçulmana.
Formas de casamento
Quanto às formas de casamento, temos a endogamia e a exogamia.
  • Endogamia quer dizer casamento permitido apenas dentro do mesmo grupo, da mesma tri-bo. Era uma forma de casamento muito comum nas sociedades primitivas, sendo encontrado ainda hoje no sistema de castas da Índia e em algumas famílias no Nordeste brasileiro.
  • Exogamia trata-se da união com alguém de fora do grupo, entre as pessoas de religião, raça ou classe social diferentes."
Pérsio Santos de Oliveira

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Algumas questões de método em sociologia
Pode-se dizer que a sociologia surgiu como ciência autônoma a partir de Comte e Saint Simon. Mas não ainda como disciplina constituída com um corpo sistemático de conhecimentos e de métodos específicos. O processo de autonomização da sociologia, em especial sua separação da filosofia, percorre todo o século XIX e, de certo modo, persiste ainda em nossos dias. Em Comte surge, pelo menos, a preocupação de estudar a sociedade com critérios "científicos".
Na Idade Média, com o rígido controle da Igreja, os espíritos mais indagadores e sábios eram ameaçados com o fogo do inferno e ardiam, de fato, nas fogueiras da inquisição. A ciência não podia discutir as causas últimas da natureza e dos fenômenos sociais, pois tais problemas só poderiam ter uma solução justa por meio da "revelação".
No Renascimento começa o conflito entre as concepções teológicas, sustentadas pela escolástica (que era um método de filosofar que tentava demonstrar a verdade da religião), e a ciência experimental que estava surgindo. A ciência experimental, por seu turno, paralelamente ao desenvolvimento da técnica, reforçava a idéia da burguesia nascente de que a "razão" era onipotente e não deveria estar limitada por quaisquer entraves ou preconceitos.
Quem primeiro formulou as regras mais gerais do que deveria ser o método científico foi Descartes, que negava a existência de noções apriorísticas legítimas e condenava a especulação, favorecendo, desse modo, a ciência experimental e a observação. No século XVIII, com Newton, começa propriamente a "revolução científica" no terreno das ciências naturais, que a partir desse momento conquistam sua "carta de alforria" em relação à religião.
Nessa época, o movimento que foi chamado de Iluminismo, defende o poder absoluto da "razão" humana. Trata-se de uma concepção burguesa que se inspira, fundamentalmente, na idéia de uma conjunção necessária entre o progresso material e o aperfeiçoamento moral da sociedade. O Iluminismo implica, também, na idéia de que a "razão" pode oferecer os critérios e princípios para reformular e organizar a sociedade, pois concebe a "natureza humana" como algo factível, dado de uma vez para sempre e passível de ser perfeitamente compreendida de modo "racional e científico". Um exemplo clássico, no campo da filosofia, é Feuerbach, que, segundo Marx, entendia a essência humana apenas "como gênero", como generalidade interna, muda, que liga apenas de modo natural os múltiplos indivíduos" (1). Porém, o jovem Marx (e segundo alguns, também em sua maturidade) tampouco escapou das influências do Iluminismo, manifestando irrestrita confiança nos poderes da "razão" e da "ciência" para libertar os homens de toda a opressão.(...) Há nele, sem dúvida, uma crença nas possibilidades da humanidade e na grandeza da "razão" (desde que saiba perscrutar o homem como ser histórico), o que talvez seja, precisamente, o legado irrenunciável do Iluminismo. No entanto, o fato, é que foi Durkheim quem aceitou plenamente o desafio posto por Comte, no sentido de enquadrar, em termos de métodos e procedimentos epistemológicos, as ciências sociais nos padrões das ciências naturais.
Durkheim, em certos aspectos, discordava de Comte: a idéia da existência de "conexões causais", por exemplo, era aceita por ele, embora fosse alheia aos princípios do positivismo. A finalidade da ciência, conforme Durkheim, seria descobrir as conexões causais, a causalidade dos fenômenos observados na sociedade. O modelo da ciência social proposta por Comte era a física. Tratava-se, assim, de fundar uma "física social". Durkheim, à semelhança de Spencer tem como modelo da ciência social a biologia. Mas reconhece como diferença fundamental entre uma e outra, o fato do corpo humano ter uma única consciência, enquanto a sociedade possui uma infinidade de consciências.
O método que Durkheim aplicou a sociologia pode ser sintetizado pelas palavras de Guiddens: "Os fatos sociais, afirmou ele com destemor, precisam ser tratados como "coisas" - talvez o mais controvertido dos preceitos expostos em As Regras do Método Sociológico. Essa brusca afirmação de que os fenômenos sociais pertencem ao reino da natureza é apresentada no livro no contexto de uma interpretação vigorosamente comteana do progresso da ciência. A ciência empírica tem de vencer os preconceitos e ilusões das idéias do homem acerca da natureza antes que a própria conduta social possa ser examinada cientificamente: eis aí uma proeza particularmente difícil de executar, pois o preconceito e a ilusão, na verdade, fazem parte da nossa vida social. Encarar os fatos sociais como coisas é realizar o ato de desapego necessário ao reconhecimento de que a sociedade tem existência objetiva independente de qualquer existência particular nossa; daí que possa ser estudada por métodos de observação objetiva. O traço mais importante de uma "coisa" é não ser plástica à vontade: uma cadeira se moverá se for empurrada, mas sua resistência demonstra que ela existe externamente a quem quer que a esteja empurrando. O mesmo se aplica aos fatos sociais, ainda que não sejam visíveis de modo como o é um objeto físico, como a cadeira." (2)
Não seria preciso dizer que, ao enquadrar a sociologia nos moldes das ciências da natureza, partindo do princípio que os fatos sociais devem devem ser tratados como "coisas", Durkheim reifica a sociedade humana. Quer dizer, toma as relações sociais que transcorrem na dimensão da historicidade como se constituíssem um objeto sujeito a certas leis rigorosas, absolutamente independentes da consciência humana. As relações sociais não são tomadas como inseridas num processo histórico. Assim, Durkheim afirma explicitamente nas Regras do Método Sociológico que os fatos sociais são fenômenos naturais submetidos à leis naturais. E além disso, que devemos considerar os fenômenos sociais desligados dos sujeitos conscientes que, eventualmente, possam ter determinadas representações.
(...) Durkheim teve o mérito de fazer um apelo à exterioridade. Ou seja, ao estudo das manifestações objetivas dos fenômenos sociais, abrindo possibilidades heurísticas bem superiores àquelas que ele mesmo colocou. Se o método de Durkheim, no sentido mais global, está irremediavelmente comprometido com a perspectiva apologética que caracteriza o positivismo, seus estudos desenvolveram e inspiraram "métodos especiais" (técnicas) de pesquisa que hoje são imprescindíveis às ciências sociais.
A posição de Weber, outro clássico da sociologia, em certo sentido, é exatamente oposta a de Durkheim. É o que indica claramente Bourdieu: "Para Weber, não existe um "mundo objetivo" no sentido em que Marx se refere à sociedade global ou Marcel Mauss aos fenômenos sociais totais; a objetividade do social só pode ser apreendida através das ações individuais. A adequação dos tipos-ideais a uma "realidade objetiva" adquire, assim, para a sociologia weberiana, uma importância fundamental; todo o problema se resume em construir uma tipologia da ação - o capitalista, o sacerdote, o profeta, o político, o cientista - para que se possa compreender as objetivações como capitalismo, religião, política e ciência." (3)
Portanto, se para Durkheim o método implica em descobrir toda a verdade na objetividade do social, inclusive os valores que nela estão inscritos independentemente das vontades e consciências, para Weber o método consiste em separar o objeto dos valores. Embora reconheça que, concretamente, na história os fatos e os valores estão unidos e implicados, para ele é possível (e necessário), do ponto de vista epistemológico, efetuar essa separação no processo mesmo de busca da verdade. Segundo Weber, não é a realidade em si mesma que é regida por leis naturais objetivas, mas é possível - dentro de certos limites - atingir a "objetividade" através do método. Para tanto, seriam necessárias algumas condições básicas: a) não recorrer a pressupostos que impliquem em juízos de valor; b) verificar as próprias constatações através do recurso à explicação causal; c) compreender que na seleção dos problemas está embutida uma "relação de valores" que é inevitável, mas que no resultado do conhecimento pode ser superada através do método adequado, já que não são propriamente "juízos de valor".
Na concepção de Weber, que tem a racionalidade da realidade social como eixo-central - pois se a sociedade se constitui como uma inter-subjetividade racional, ela só pode ser apreendida racionalmente, - a construção dos "tipos ideais", que tem como função "explicar" a lógica dos fenômenos, é o ponto nodal do seu método de investigação. Não obstante ele próprio, dotado de uma cultura universal e de enorme talento, tenha produzido trabalhos científicos sumamente importantes na história da sociologia, e que continuam tendo grande valor heurístico, é interessante observar que o método weberiano não fez "escola". Weber talvez tenha sido o único grande weberiano que a história registra. Mesmo entre os intelectuais universitários de nossa época, que discorrem longamente sobre seus méritos, é raro encontrarmos uma adesão global às concepções de Weber. Acontece que, o subjetivismo das premissas weberianas, à medida que negue qualquer possibilidade de totalização social (como faz Durkheim, embora de modo reificado ou de totalização histórica (como faz Marx), deixa margem a um arbítrio metodológico de difícil equacionamento. Nos estudos atuais, Weber normalmente é convocado para socorrer os ecléticos em questões teóricas ou metodológicas pontuais.
Marx talvez seja, não o mais difícil, porém o mais complexo dos clássicos da ciência social. E, sem dúvida nenhuma, é o mais comprometedor entre todos eles, pelo simples fato que foi o mais comprometido com a luta pela transformação social. Esse fenômeno, por si mesmo, já aponta uma das características fundamentais do método marxiano. "Os filósofos - afirmou - se limitaram a interpretar o mundo de diferentes maneiras; mas o que importa é transformá-lo."(4) Outra característica essencial da metodologia de Marx é o pressuposto de uma totalização histórica que considera "a produção e reprodução das condições materiais de existência" como dimensão básica e angular da sociedade. Isso significa que, segundo Marx, não podemos compreender a sociedade como objetivação que possui determinadas leis, nem a conduta "racional" dos homens no interior desse processo, se não levarmos em conta (ao nível dos pressupostos epistemológicos prioritários) aquilo que é prioritário aos próprios homens que vamos analisar.
"Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitem a satisfação destas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato este é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos." (5)
As críticas ao método sociológico fornecido pelo marxismo partem, estranhamente, de dois lados. Daqueles que, seguindo a tradição positivista, consideram que suas premissas não são "suficientemente científicas" em termos das ciências naturais (que são tomadas como parâmetro), pois partem de generalizações que não podem ser comprovadas por via puramente empírica, além de estarem tais premissas vinculadas à noção "terrificante" da dialética. Nesse campo, podemos citar, por exemplo, Mário Bunge, que condena o marxismo como mera "ideologia" e, portanto, incapaz de propor "tecnologias sociais" eficazes para solucionar problemas fragmentários.
Mas as críticas partem, igualmente, daqueles que condenam o marxismo por suas pretensões "extremadas" em termos científicos. E a posição de Castoriadis: A filosofia da história marxista é, em primeiro lugar, e sobretudo, um racionalismo objetivista. Já vemos isso na teoria marxista da história aplicada a história passada. O objeto da teoria da história é um objeto natural e o modelo que lhe é aplicado é um modelo análogo ao das ciências da natureza. Forças que agem sobre os pontos de aplicação definidos produzem resultados predeterminados de acordo com um grande esquema causal que deve explicar tanto a estática como a dinâmica da história." (6)
Submetido a um "fogo cruzado", o marxismo, por certo, é mais vulnerável a essa última posição. O que há de equívoco no marxismo não é o seu "compromisso ideológico" com os explorados e oprimidos, nem o fato de adotar premissas de ordem histórica, mas, ao contrário, certas veleidades de "ciência estritamente objetiva" - tal como as ciências naturais - que se insinuam nos escritos dos clássicos (Marx, Engels, Lênin etc.) e se derramam copiosamente na caligrafia de Stálin e seus epígonos. No entanto, embora Marx não tenha sido um "sociólogo" no sentido estrito e restrito do termo, pois suas contribuições são de caráter mais amplo, seu pensamento representa um eixo crucial das ciências sociais em geral e da sociologia em particular. A partir dele, o método da sociologia - no sentido de um sistema de categorias operantes como desvendamento do real- tentou assimilar numa grande síntese teórica os dois termos da problemática social: conhecimento e ação, indivíduo e sociedade, sujeito e objeto, agente e estrutura, consciência e leis históricas, enfim, "unidade e luta dos contrários" como autoprodução histórica dos homens reais e concretos. Que essa síntese não esteja pronta e acabada, que apresente limitações e ambigüidades, só fazem reafirmar seus pressupostos mais gerais de que a humanidade é um gesto que constantemente estamos fazendo, e que a verdade é um processo ininterrupto, portanto impossível de verificação definitiva "pela via puramente empírica".
Assim, não é de estranhar que Guiddens, um dos sociólogos contemporâneos mais acatados nos meios acadêmicos - e reconhecido pelo seu explícito ecletismo, - ao sumariar as suas "novas regras do método sociológico", coloque como primeira delas uma idéia de inspiração nitidamente marxista:
"A sociologia não esta interessada em um universo `pré-datado' de objetos, e sim em um universo que é constituído e produzido pelas ações ativas dos sujeitos. Os seres humanos transformam socialmente a natureza, e ao ` humanizá-la' eles se transformam; mas eles não produzem o mundo natural, é claro, que está constituído como um mundo-objeto, independentemente de suas existências. Se ao transformar esse mundo, eles criam a história, e portanto vivem na história, eles o fazem porque a produção e reprodução da sociedade não são "programadas biologicamente", como entre os animais inferiores. (As teorias que os homens desenvolvem podem afetar a natureza, através de suas aplicações tecnológicas, mas elas podem não chegar a se constituir como características do mundo natural, como o são no caso do mundo social.)" (7)
Ora, se a sociologia em particular e as ciências humanas em geral possuem essa indescartável dimensão subjetiva, decorre que não podemos considerar a questão dos valores ou da ideologia como um "resíduo" ou empecilho do conhecimento, a exemplo do que ocorre normalmente nos meios universitários. As ciências humanas devem buscar o seu próprio estatuto de cientificidade e abandonar, de uma vez por todas, o que poderíamos chamar de "complexo de ciências naturais".
As ciências naturais, por terem como objeto um mundo que não é constituído por sujeitos, tal como ocorre em relação à ciência social, apresentam, em cada época, pressupostos epistemológicos e métodos de verificação mais estáveis e harmônicos. Isso não quer dizer que sejam infensas às rupturas, revoluções epistemológicas e anarquia metodológica, e até mesmo às lutas marcadamente ideológicas e políticas em termos de formas de constituição e legitimação dos conhecimentos produzidos. Sem falar naquelas contradições mais óbvias, que dizem respeito à localização dos problemas e prioridades de pesquisa. Porém, nas ciências sociais tais lutas são sempre mais intensas e agudas, pois o que esta em jogo não são objetos ou objetivações que, indiretamente, produzirão seus efeitos (em geral confusamente percebidos) nas relações sociais. Ao contrário, o que está sendo tratado, por exemplo na sociologia, são as próprias ações dos homens uns sobre os outros. E além do mais, nas ciências sociais, as hipóteses, explicações ou teorias, verdadeiras ou falsas, em alguma medida passam a compor o próprio objeto estudado à medida que são divulgadas. Do conhecimento produzido pelas ciências da natureza, podemos dizer que, tendencialmente, caminham no sentido de explicitar a objetividade em si mesma, como algo independente das vontades e interesses humanos. Por outro lado, nas ciências sociais, em virtude de tratar com um objeto paradoxal, por ser um "objeto sujeito", enquanto o sujeito que investiga, ele próprio é uma parte inseparável do objeto investigado, a pergunta "o que é a sociedade" é rigorosamente inseparável de outra: "como deve ser a sociedade?".
Portanto, a diversidade e as discussões metodológicas que permeiam as ciências humanas não apenas são inevitáveis, como absolutamente necessárias. Não se trata de "imaturidade" ou "crise de formação" de uma ciência que seria ainda muito jovem, mas algo que resulta de sua própria essência como modalidade do saber. As classes sociais (e até os indivíduos) ocupam uma posição diferente dentro da sociedade e, por esse motivo, é natural que tenham motivações, interesses e perspectivas teóricas diferentes ou, no caso de classes antagônicas, perspectivas teóricas opostas. Afirmar que só existe uma resposta possível, "cientificamente correta", para cada questão social, ou um único tipo de questão em torno de cada temática, é preparar teoricamente o terreno da manipulação e do obscurantismo. Vale dizer, no entanto, para evitar possíveis mal entendidos, que não estamos propondo uma total arbitrariedade subjetivista nas ciências sociais, nem a imprecisão como mérito do conhecimento. A verdade concreta existe, pois a realidade social é algo que objetivamente estamos reproduzindo e construindo diariamente. Mas exatamente por ser uma realidade em constante auto-produção - ao invés de uma "coisa" já feita e acabada - o critério da verdade remete para o próprio processo de auto-construção social do homem e não para eventos específicos, tomados empiricamente, que dariam a palavra final, o veredito, sobre a verdade ou falsidade de uma hipótese ou teoria.
Por isso, cada corrente de pensamento, a partir de suas próprias premissas, num diálogo constante com as demais, buscando assimilar seus métodos especiais e confrontando resultados, deve desenvolver suas pesquisas e seu corpo teórico. Mas quando falamos em "diálogo" estamos falando de crítica, e quando falamos de crítica estamos falando de análise e confrontação, o que inclui a discussão dos "valores" que estão por trás de cada postura epistemológica. No campo teórico, a única postura que realmente obstaculiza o avanço geral do saber é a indiferença, a sinuosidade das afirmativas que, antes de tudo, visam não atingir ninguém".
De qualquer modo, tanto nas ciências naturais quanto nas sociais, o método é sempre indispensável, até mesmo quando se pretende superar todos os métodos passados. E isso, porque o conhecimento humano tem dois pressupostos fundamentais: 1) a unidade do real, que se comprova pelo simples fato da generalização e da abstração que constituem a própria essência dos conceitos; 2) o caráter cumulativo do conhecimento que fica demonstrado, não pela continuidade formal das teorias, mas exatamente pelo fato que, apesar das descontinuidades, a práxis humana tem uma direção ascendente, ou seja, o homem domina e se apropria cada vez mais do mundo objetivo. Ora, se o mundo real tem uma determinada unidade ontológica e o conhecimento é cumulativo, resulta que só podemos penetrar no desconhecido pela via do conhecido. O método é uma ponte que o mundo conhecido lança sobre o mundo desconhecido, independentemente de nossa disposição em utilizar este ou aquele método. Logo, se o método é inevitável, é melhor que seja consciente e sistemático, o que não significa assumir o "dogmatismo do método", o que nos levaria apenas até as portas do desconhecido, sem condições de penetrar efetivamente nele. O método é dinâmico. Caracteriza-se também, tal como o conhecimento, por ser um processo e nunca um ponto fixo. Numa palavra, o método é constituído pelos conhecimentos fundamentais acumulados a respeito do processo de conhecimento. Para Castoriadis, ele é um "sistema de categorias operantes", o que significa dizer que ele decorre dos conhecimentos mais universais e tem como finalidade lançar uma primeira luz sobre as realidades particulares que temos como objeto. Em termos filosóficos, isso se manifesta do seguinte modo: "O conhecimento da realidade, o modo e a possibilidade de conhecer a realidade dependem, afinal, de uma concepção da realidade, explícita ou implícita. A questão: como se pode conhecer a realidade? é sempre precedida por uma questão mais fundamental: o que é a realidade?"(8) Portanto, de certo modo, o método é tudo que se sabe do objeto antes de abordá-lo diretamente. São os caminhos que devem ser assumidos para penetrar na realidade do objeto do conhecimento. Tais caminhos são definidos em níveis de abstração decrescentes: partimos, por exemplo, do pressuposto de que a realidade histórica é dinâmica, possui contradições, etc, até chegarmos aos instrumentos específicos (tais como questionários, entrevistas, observação participante...) que visam desvendar concretamente uma realidade particular.
Enfim, se é inerente à sociologia e as ciências humanas a pluralidade das perspectivas teóricas, a diversidade dos métodos, também o é a "socialização das técnicas" de pesquisa. Nesse terreno, especialmente, qualquer preconceito é extremamente nefasto. Grande parte dos métodos ou técnicas de pesquisa empírica já são, hoje, patrimônio comum da sociologia, à medida que utilizados no contexto de pressupostos e categorias teóricas que estabelecem seus limites e possibilidades como instrumentos heurísticos.
BIBLIOGRAFIA
(1) MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã (Feuerbach). São Paulo, Editorial Grijalbo, 1977, p. 127.
(2) GUIDDENS, Anthony. As idéias de Durkheim. São Paulo, Editora Cultrix, Coleção Mestres da Modernidade, 1978, p. 24.
(3) BOURDIEU, Pierre. Pierre Bourdieu. São Paulo, Editora Ática, Coleção Grandes Cientistas Sociais, 1983, p. 12.
(4) MARX & ENGELS, op. cit., p. 128.
(5) Idem, p. 39.
(6) CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo, Editora Paz e Terra, 1982, p. 55.
(7) GUIDDENS, Anthony. Novas Regras do Método Sociológico. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978, p. 169.
(8) KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1976, p.35.
Referência:
GENRO FILHO, Adelmo. Algumas questões de método em sociologia. Boletim de Ciências Sociais – Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Florianópolis, UFSC, mimeo., n.40, jan.-mar., 1986, pp. 1-12. [Texto produzido para a disciplina "Técnicas de Pesquisa em Sociologia" do Curso de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, ministrada pela professora Neide Almeida Fiori, no primeiro semestre de 1984] [Ref.: T080]

Atividade
Este, de longe, é o texto mais complexo dos textos estudados até o momento, por isso vamos “dissecá-lo” para melhor compreendê-lo. Siga as orientações descritas nos tópicos abaixo:
1-) Leitura geral do texto.
2-) Separação das partes do texto seguindo o seguinte critério:
a) Pensamento de Durkheim.
b) Pensamento de Max Weber.
c) Pensamento de Karl Marx.
d) Pensamento de Descartes
3-) Dividindo os diversos momentos históricos do texto:
a) Idade Média
b) Renascimento
c) Iluminismo
4-) Idéias dos pensadores contemporâneos:
a) Anthony Giddens
b) Pierre Bourdieu
c) Cornelius Castoriadis
d) Karel Kosik
5-) O que significa utilizar um método científico em ciências sociais?

quinta-feira, 15 de março de 2007


SIGNIFICADO DA SOCIEDADE HUMANA
O que é a sociedade humana? Mais exatamente, o que é uma sociedade humana? Vimos que para Spencer a socie-dade humana é comparável a um organismo vivo com fun-ções semelhantes às encontradas num ser orgânico. Em Prin-cipies of Sociology, Spencer estendeu-se bastante na elabo-ração dessa analogia. Afirmou que o organismo biológico e a sociedade se subordinam a processos de crescimento e de-clínio, ambos consistem em partes interdependentes, ambos possuem um sistema regulador — o sistema nervoso no ani-mal e o sistema governamental na sociedade — e até um sis-tema distributivo, formado pelo sistema circulatório no pri-meiro, e pelo sistema de comunicações no segundo. Embora Spencer afirmasse que essa analogia deveria ser encarada como uma simples ilustração, e salientasse as importantes di-ferenças existentes entre os organismos biológico e social, ele utilizou a analogia para analisar muitos fenómenos sociais.
Alguns contemporâneos de Spencer, notadamente o so-ciólogo e filósofo russo-alemão Paul von Lilienfeld, foram mais adiante na tentativa de comparar a sociedade com um organismo vivo. Para Lilienfeld, a sociedade é um organis-mo vivo com todas as suas características, inclusive a multi-plicação, crescimento, metabolismo, doença e morte. A socie-dade é para ele apenas o mais avançado e complexo dos or-ganismos. Outros que aceitaram a visão de sociedade como um ser orgânico são o sociólogo e estadista alemão Albert G. F. Schãffle, o sociólogo francês René Worms e o soció-logo russo-francês Jacques Novicow, cada um desenvolven-do a ideia de maneira própria. Todos esses escritores per-tencem à chamada escola bioorganicista.
A analogia organicista de Spencer recebeu várias crí-ticas de seus contemporâneos. Entre os que rejeitaram a visão da sociedade comparável a um organismo está o eminente so-ciólogo russo Nikolai K. Mikhailovsky. Ele argumentava que a sociedade, em vez de ser um organismo, era uma "coorde-nação de organismos indivisíveis", cada um deles com ór-gãos próprios e realizando uma totalidade de funções. En-quanto no organismo, escreveu ele, o todo, e não suas partes constitutivas, sofre ou experimenta prazer, na sociedade ape-nas os seus membros podem ter consciência de dor ou prazer. Não se pode. portanto, considerá-los análogos, embora haja semelhanças entre ambos, particularmente quanto aos pro-cessos de mudança.
A alegação de que a sociedade é um organismo é, no momento, totalmente desacreditada. O fato de que a socie-dade se compõe de indivíduos que são entidades biológicas não a torna uma entidade possuidora das características de seus componentes. Poder-se-ia afirmar, também, que a or-ganização comercial é um organismo biológico porque é com-posta de indivíduos que são entidades biológicas.
A sociedade tem sido definida de diferentes maneiras. Sumner e Keller, em The Science of Society, consideraram a sociedade "um grupo de seres humanos vivendo em esforço cooperativo para a subsistência e perpetuação da espécie", enquanto o sociólogo fino-inglês Edward Westermarck a entendia simplesmente, mas de maneira mais vaga, como um grupo de indivíduos que levam uma vida de cooperação. Giddings, por outro lado, em Readings in Descriptive and Historical Sociology, definiu a sociedade como "um grupo de indivíduos que cooperam para a realização de qualquer as-sunto de interesse ou utilidade comum". Robert Maclver, em Sociology, descreveu a sociedade como "um sistema de rela-ções sociais no qual e através do qual vivemos", enquanto o sociólogo italiano Vilfredo Pareto a encarava como um agre-gado de moléculas humanas vivendo em relacionamento mútuo.
Esclarecendo melhor essas várias opiniões, talvez pos-samos dizer que a sociedade é um grupo de pessoas unidas por tradições, costumes e modos de viver comuns, ou uma cultura comum, em que existe entre seus membros uma consciência de grupo. Essa última característica, o senso de per-tencer ao grupo, foi acentuado por Maclver e Giddings. De-ve-se acrescentar que o termo sociedade é usado pêlos so-ciólogos em sentido amplo e restrito. No sentido mais amplo, inclui a raça humana como um todo, mas no sentido restrito — usado com mais frequência — refere-se a grupos que va-riam em tamanho desde um pequeno número de famílias, constituindo uma tribo primitiva, às modernas nações de cen-tenas de milhões de pessoas. Assim, o sociólogo fala de so-ciedade humana e, ao mesmo tempo, de sociedade zulu, caraíba, esquimó, albanesa, hindu, mexicana ou americana. Uma sociedade nesse sentido, além disso, inclui uma grande va-riedade de grupamentos menores, como grupos de idade e sexo, classes económicas ou sociais, grupos ocupacionais e comunidades.

TEORIAS DA ORIGEM DA SOCIEDADE HUMANA
É extremamente difícil, se não impossível, descobrir ori-gens em assuntos humanos, no sentido de averiguar exatamente o que aconteceu no princípio. A ciência abandonou a procura das primeiras origens, deixando esse problema para os filósofos especulativos, e satisfazendo-se com relações causais. O cientista social espera chegar a inferências razoa-velmente bem fundadas, e não a certezas, quanto aos vários aspectos ou fases da vida social, e à vida social em si mes-ma. O início é nebuloso, e muitos elos da corrente talvez não venham jamais a ser encontrados. Por isso, as explica-ções relativas às origens da sociedade são muitas e di-vergentes.

Concepções dos Filósofos Antigos e Modernos
Podemos encontrar, na Antiguidade, uma vaga concep-ção de um tipo de processo evolucionista no pensamento dos filósofos gregos. Nas obras de Platão e Aristóteles encon-tra-se tanto a ideia de mudança social, quanto o conceito de progresso. Centenas de anos mais tarde, o poeta romano Lucrécio, escrevendo no século I, expressou, em De rerum navarum, a ideia de evolução não somente das coisas materiais, mas também dos assuntos sociais. O maior desenvolvimento desse conceito, contudo, só foi feito séculos mais tarde. No século XVII, encontra-se, novamente, a noção de evolução social nas interpretações dos filósofos. Essas teorias baseavam-se, naturalmente, quase todas na especulação. Assim, o filósofo inglês Thomas Hobbes, um dos primeiros de uma série de pensadores dos séculos XVII e XVIII preocupados com a origem dos fenómenos, inclusive da sociedade huma-na, concluiu que o homem foi, de início, pouco mais do que um selvagem, levando uma vida isolada e egoísta, visando apenas à satisfação de seus próprios desejos e impulsos. O homem primitivo estava sempre em guerra com os outros ho-mens, e vivia no terror perene de ser atacado e morto pêlos vizinhos. Com o tempo, no entanto, compreendeu que, reu-nindo-se em bandos e concordando em viver em paz com os vizinhos, seria capaz de livrar-se das condições insuportá-veis em que se encontrava. A sociedade organizada emergiu desse período da existência humana.
Um contemporâneo de Hobbes, John Locke, divergiu dele ao representar o estado original do homem como sendo mais pacífico do que beligerante. Mas afirmou igualmente que, para progredir, o homem teve que reunir-se em grandes gru-pos, em vez de viver em famílias isoladas e pequenos bandos, que, para ele, foram a forma original da vida grupai. Opinião semelhante foi manifestada pelo filósofo francês do sé-culo XVIII Jean-Jacques Rousseau. Considerando o estado original do homem nem bom, nem mau, mas simplesmente "natural", ele o imaginou, entretanto, como fundamentalmen-te selvagem e cruel, até que o homem entrou em acordo com seus semelhantes para viver em paz e, assim, aprendeu a controlar-se. Como esses escritores, e alguns outros de me-nor importância, conceberam a sociedade humana como sen-do o resultado de um tipo de acordo ou "contrato" feito pêlos homens, eles são conhecidos como expoentes da teoria do contrato social da sociedade humana. Concepções dos Primeiros Pensadores Sociais e Sociólogos
Baseando ainda sua teoria da origem da sociedade hu-mana na especulação, o pensador italiano Viço chegou a con-clusões bastante artificiais sobre o princípio da associação humana. Afirmou, precisamente, que o homem, desde o início, viveu em grupos. Em determinado período, no entanto, as re-lações sociais degeneraram, forçando o homem a viver num estado anti-social, bárbaro e cruel, do qual emergiu tomando consciência de uma presença divina e do consequente senti-mento de vergonha. Montesquieu, por outro lado, acreditava que o homem fora levado à vida associativa pelo medo das opressivas forças naturais, diante das quais se sentia desam-parado e só. Na interpretação desses autores, e na dos adep-tos da escola do contrato social, está implícita a ideia da evolução e progresso.
O francês Condorcet foi mais específico em sua formu-lação de uma teoria da evolução e progresso. Em Esquisse d'un tableau historique dês progrès de iesprit humain, propôs uma teoria da evolução social em estágios, segundo a qual a civili-zação passara por dez estágios de desenvolvimento, cada um mais elevado do que o anterior, sendo que o mais alto de todos estaria ainda por atingir. Com essa teoria, Condorcet antecipou o "primeiro" sociólogo, Comte, embora este o negasse.

Teorias de Comte e Spencer

Já mencionamos a teoria dos três estágios de Comte, pêlos quais a humanidade presumivelmente passa. Comte suplementou essa teoria, relativa principalmente ao desenvol-vimento intelectual, com outra, segundo a qual a história hu-mana passa de uma era Militar para uma Legalista e dessa a uma Industrial, correspondendo aos estágios Teológico, Metafísico e Positivo. Em sua opinião, a sociedade surgiu como o resultado de uma necessidade premente de associa-ção dos seres humanos, que se desenvolveu segundo leis de-finidas. Comte acreditava que as sociedades existentes se encontram em estágios diferentes de desenvolvimento, desde o mais primitivo ao mais evoluído, e que, além disso, os vários aspectos da vida em qualquer sociedade podem estar em ní-veis diferentes. O progresso, afirmava ele, é inevitável, em-bora seja necessariamente gradual, lento e desigual; um estado de existência altamente desejável pode ser atingido através de determinadas reformas de longo alcance.
A teoria da evolução social teve seu desenvolvimento e elaboração mais altos com Herbert Spencer, considerado o pai do evolucionismo clássico. Deve-se recordar que Spencer con-siderava a sociedade semelhante a um organismo biológico. Outra teoria sua, mais rica e influente, asseverava que a so-ciedade se subordina às mesmas leis de evolução de todas as matérias, orgânicas ou inorgânicas. Em outras palavras, pode-se observar o mesmo processo evolutivo em todos os fenóme-nos, inclusive os sociais, que ele significativamente chamava de "superorgânicos" Sua teoria geral da evolução, englo-bando todos os fenómenos, é apresentada em First Principies, enquanto a teoria dos fenómenos superorgânicos, ou sociais, é tratada em detalhe em suas obras sociológicas, The Síudy o f Sociology e The Principies of Sociology.
Em resumo. Spencer afirmou que a sociedade humana. como os outros fenômenos, se desenvolveu de um estágio sim-ples para um complexo; a evolução foi lenta e gradual, em estágios bem definidos. Evolução significava para ele, em geral, progresso. A sociedade humana avançara de um esta-do selvagem para um estado civilizado, passando por vários níveis intermediários. As sociedades primitivas contemporâ-neas representavam para ele o homem num estágio social jo-vem e ainda não-desenvolvido. Sustentava, outrossim, que as sociedades atrasadas tendem a ser combativas; com seu progresso tendem a ser mais pacíficas, de modo que a indús-tria tende a substituir o militarismo. Adiantou ainda que as guerras primitivas produziram a integração necessária à for-mação dos grupos sociais. Spencer, entretanto, não encarava a evolução corno progresso contínuo, mas afirmava que há um limite, após o qual ocorre desintegração e morte. A desinte-gração também é gradual e implica um processo de evolução •o inverso. A evolução é, portanto, de natureza cíclica.
Segundo Spencer há um processo de equilibração envol-vido na evolução, o que siqnifica, no caso da sociedade, que há uma tendência para o alcance de um equilíbrio entre a sociedade e seu ambiente, entre uma sociedade e outra, e entre os vários grupos e forças sociais dentro de uma sociedade. O equilíbrio ocorre através da luta pela vida. Quando o equi-líbrio é atingido, a sociedade desfruta paz e liberdade. Como a sociedade e suas instituições estão sujeitas a um processo automático de evolução, Spencer concluiu que é inútil tentar mudar as condições, e os indivíduos devem ajustar-se ao status quo. Era um entusiástico defensor do laissez-faire, embora concordasse Jia possibilidade de reformas limitadas.
Entre os defensores da teoria da evolução linear e pro-gressiva estava Maksim M. Kovalevsky. Segundo este gran-de sociólogo russo, a sociedade humana passou por vários estágios bem definidos, até alcançar, finalmente, a ordem so-cial democrática, a mais alta que se conhece. O estágio mais primitivo da organização social foi a horda, fracamente or-ganizada como um sistema familiar, ou clã, matrilinear (um sistema no qual só se reconhece a filiação da linha feminina materna). A esse sucedeu um sistema patrilinear, ou de gens. O sistema de gens desenvolveu-se num tipo de organização feudal, que prevaleceu durante muito tempo em muitas so-ciedades antigas e modernas. O sistema feudal, finalmente, cedeu a uma ordem democrática marcada pela igualdade e liberdade.
Poucos sociólogos, se é que os há, aceitam a teoria da evolução social exposta por Spencer. As provas reunidas nas últimas décadas sobre as sociedades humanas não revelam tal padrão evolucionista. Quanto à analogia organicista, a comparação entre o desenvolvimento das sociedades humanas e as matérias orgânicas e inorgânicas é considerada sem valor. Até mesmo importantes biólogos darwinistas, como Thomas Huxley e Alfred Russel Wallace, discordaram da compara-ção de Spencer. A identificação da evolução com progresso também é rejeitada pela maioria dos sociólogos, pois é difícil determinar o que é progresso, principalmente nos aspectos não-materiais da vida humana. Tudo o que se pode perceber é a mudança — nenhuma sociedade é completamente estática — mas a mudança não implica necessariamente progresso. Os sociólogos preferem usar o termo "mudança" em vez de "evolução" Recentemente propôs-se uma versão diferente da ideia da evolução social, que pode ser considerada um "neoevolucionismo". Talvez os principais defensores dessa nova ver-são sejam os antropólogos Leslie A. White e V. Gordon Childe. Em Science of Cultue, White faz uma distinção en-tre o que denomina fases tecnológica, sociológica e ideológica de cultura. (As duas últimas dependem da primeira.) Uma cultura com eficiente sistema tecnológico é uma cultura evo-luída, enquanto outra com fraco sistema de utilização de energia é primitiva. Childe, em Social Evolation, afirmou que as culturas passam por três estágios bem definidos — selvageria, barbarismo e civilização — e subordinam-se a pro-cessos semelhantes aos que agem na evolução orgânica, isto é, hereditariedade, adaptação e seleção.
KOENIG, Samuel. Elementos de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar,1996
Exercícios
1-) Qual é a concepção de Spencer sobre a sociedade humana? Atualmente esta concepção é aceita por aqueles que estudam a sociedade?
2-) Qual destas concepções de sociedade apresentadas no texto você julga suficiente ?
3-) Qual ponto em comum tem a teoria de Spencer com o texto: Estágios pré-históricos de cultura. Podemos traçar um paralelo entre Spencer e Morgan?
4-) Aponte o ponto de equilíbrio que existe na sociedade, segundo a concepção de Spencer.
5-) “Spencer concluiu que é inútil tentar mudar as condições, e os indivíduos devem ajustar-se ao status quo(...)” Você concorda com esta afirmação? Por quê?
6-) Quais são as razões pelas quais, os sociólogos nos últimos anos, são contrários a concepção evolutiva da sociedade?

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Origens da Sociedade
I — ESTÁGIOS PRÉ-HISTÓRICOS DE CULTURA
Morgan foi o primeiro que, com conhecimento de causa, tratou de introduzir uma ordem precisa na pré-história da hu-manidade, e sua classificação permanecerá certamente em vigor até que uma riqueza de dados muito mais considerável nos obrigue a modificá-la.
Das três épocas principais — estado selvagem, barbárie e civilização — ele só se ocupa, naturalmente, das duas pri-meiras e da passagem à terceira. Subdivide cada uma das duas nas fases inferior, média e superior, de acordo com os progressos obtidos na produção dos meios de existência; porque, diz, "a habilidade nessa produção desempenha um papel decisivo no grau de superioridade e domínio do homem sobre a natureza: o homem é, de todos os seres, o único que logrou um domínio quase absoluto da produção de alimentos. Todas as grandes épocas de progresso da humanidade coin-cidem, de modo mais ou menos direto, com as épocas em que se ampliam as fontes de existência". O desenvolvimento da família realiza-se paralelamente, mas não oferece critérios tão conclusivos para a delimitação dos períodos.

l — Estado selvagem
FASE INFERIOR. Infância do género humano. Os homens permaneciam, ainda, nos bosques tropicais ou subtropicais e viviam, pelo menos parcialmente, nas árvores; só isso explica que continuassem a existir, em meio às grandes feras selvagens. Os frutos, as nozes e as raízes serviam de alimento; o prin-cipal progresso desse período é a formação da linguagem arti-culada. Nenhum dos povos conhecidos no período histórico estava nessa fase primitiva de evolução. E, embora esse pe-ríodo tenha durado, provavelmente, muitos milénios, não po-demos demonstrar sua existência baseando-nos em testemunhos diretos; mas, se admitimos que o homem procede do reino animal, devemos aceitar, necessariamente, esse estado tran-sitório.

FASE MÉDIA. Começa com o emprego dos peixes (incluímos aqui também os crustáceos, moluscos e outros animais aquá-ticos) na alimentação e com o uso do fogo. Os dois fenó-menos são complementares, porque o peixe só pode ser plena-mente empregado como aumento graças ao fogo. Com esta nova alimentação, porém, os homens fizeram-se independentes do clima e da localidade; seguindo o curso dos rios e as costas dos mares, puderam, ainda no estado selvagem, espalhar-se sobre a maior parte da superfície da Terra. Os toscos instru-mentos de pedra sem polimento da primitiva Idade da Pedra, conhecidos com o nome de paleolíticos, pertencem todos, ou a maioria deles, a esse período e se encontram espalhados por todos os continentes, constituindo uma prova dessas migrações. O povoamento de novos lugares e o incessante afã de novos descobrimentos, ligados à posse do fogo, que se obtinha pelo atrito, levaram ao emprego de novos alimentos, como as raízes e os tubérculos farináceos, cozidos em cinza quente ou em buracos no chão, e também a caça, que, com a invenção das primeiras armas — a clava e a lança — chegou a ser um ali-mento suplementar ocasional. Povos exclusivamente caçadores, como se afirma nos livros, quer dizer, povos que tenham vivido apenas da caça, jamais existiram, pois os frutos da mesma eram demasiado problemáticos. Como consequência da incerteza quanto às fontes de alimentação, parece ter nascido, nessa época, a antropofagia, para subsistir por muito tempo. Nessa fase média do estado selvagem, encontram-se, ainda em nossos dias, os australianos e diversos polinésios.

FASE SUPERIOR. Começa com a invenção do arco e da flecha, graças aos quais os animais caçados vêm a ser um alimento regular e a caça uma das ocupações normais e costumeiras. O arco, a corda e a seta já constituíam um instrumento bas-tante complexo, cuja invenção pressupõe larga experiência acumulada e faculdades mentais desenvolvidas, bem como o conhecimento simultâneo de diversas outras invenções. Se comparamos os povos que conhecem o arco e a flecha, mas ignoram a arte da cerâmica (com a qual, segundo Morgan, começa a passagem à barbárie), encontramos já alguns indí-cios de residência fixa em aldeias e certa habilidade na pro-dução de meios de subsistência, vasos e utensílios de madeira, o tecido a mão (sem tear) com fibras de cortiça, cestos de cortiça ou junco trançados, instrumentos de pedra polida (neolíticos). Na maioria dos casos, o fogo e o machado de pedra já permitiam a construção de pirogas feitas com um só tronco de árvore e, em certas regiões, a feitura de pranchas e vigas necessárias à edificação de casas. Todos esses progressos
são encontrados, por exemplo, entre os índios do noroeste da América, que conheciam o arco e a flecha, mas não a cerâ-mica. O arco e a flecha foram, para a época selvagem, o que a espada de ferro foi para a barbárie e a arma de fogo para a civilização: a arma decisiva.

II — A barbárie
FASE INFERIOR. Inicia-se com a introdução da cerâmica. Ë possível demonstrar que, em muitos casos, provavelmente em todos os lugares, nasceu do costume de cobrir com argila os cestos ou vasos de madeira, a fim de torná-los refratários ao fogo; logo descobriu-se que a argila moldada dava o mesmo resultado, sem necessidade do vaso interior.
Até aqui, temos podido considerar o curso do desenvol-vimento como um fenómeno absolutamente geral, válido em determinado período para todos os povos, sem distinção de lugar. Mas, com a barbárie, chegamos a uma época em que se começa a fazer sentir a diferença de condições naturais entre os dois grandes continentes. O traço característico do período da barbárie é a domestícação e criação de animais e o cultivo de plantas. Pois bem: o continente oriental, o chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais domesti-cáveis e todos os cereais próprios para o cultivo, exceto um; o continente ocidental, a América, só tinha um mamífero domesticável, a lhama, — e, mesmo assim, apenas numa parte do sul — e um só dos cereais cultiváveis, mas o melhor, o milho. Em virtude dessas condições naturais diferentes, a partir desse momento a população de cada hemisfério se desen-volve de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira entre as várias fases são diferentes em cada um dos dois casos.

FASE MEDIA. No Leste, começa com a domesticação de animais; no Oeste, com o cultivo de hortaliças por meio de irrigação e com o emprego do tijolo cru (secado ao Sol) e da pedra nas construções.
Comecemos pelo Oeste, porque, nessa região, essa fase não tinha sido superada, em parte alguma, até a conquista da América pêlos europeus.
Entre os índios da fase inferior da barbárie (figuram aqui todos os que vivem a leste do Mississipi) existia, já na época de seu descobrimento, algum cultivo do milho e, talvez, da abóbora, do melão e de outras plantas de horta, que consti-tuíam parte muito essencial de sua alimentação; eles viviam em casas de madeira, em aldeias protegidas por paliçadas. As tribos do Noroeste, principalmente as do vale do rio Colúmbia, achavam-se, ainda, na fase superior do estado selva-gem e não conheciam a cerâmica nem o mais simples cultivo de plantas. Ao contrário, os índios dos chamados "pueblos" no Novo México, os mexicanos, os centro-americanos e os peruanos da época da conquista, achavam-se na fase média da barbárie; viviam em casas de adobe ou pedra em forma de fortalezas; cultivavam em plantações artificialmente irrigadas o milho e outros vegetais comestíveis, diferentes de acordo com o lugar e o clima, que eram a sua principal fonte de ali-mentação; e tinham até domesticado alguns animais: os mexi-canos, o peru e outras aves; os peruanos, a lhama. Sabiam, além disso, trabalhar os metais, exceto o ferro; — por isso ainda não podiam prescindir de suas armas e instrumentos de pedra. A conquista espanhola cortou completamente todo desenvol-vimento autónomo ulterior.
No Leste, a fase média da barbárie começou com a domesticação de animais para o fornecimento de leite e carne, enquanto que, segundo parece, o cultivo de plantas perma-neceu desconhecido ali até bem adiantada esta fase. A domesticação de animais, a criação de gado e a formação de grandes rebanhos parecem ter sido a causa de que os arianos e semitas se afastassem dos demais bárbaros. Os nomes com que os arianos da Europa e os da Ásia designam os animais ainda são comuns, mas os nomes com que designam as plantas culti-vadas são quase sempre diferentes.
A formação de rebanhos levou, nos lugares adequados, à vida pastoril; os semitas, nas pradarias do Tibre e do Eufrates; os arianos, nos campos da índia, de Oxus e Jaxartes,* do Don e do Dniepr. Foi, pelo visto, nessas terras ricas em pastos que, pela primeira vez, se conseguiu domesticar animais. Por isso, parece às gerações posteriores que os povos pastores pro-cediam de áreas que, na realidade, longe de terem sido o berço do género humano, eram quase inabitáveis para os seus sel-vagens avós e até para os homens da fase inferior da barbárie. E, ao contrário, desde que esses bárbaros da fase média se habituaram à vida pastoril, jamais lhes ocorreria a ideia de abandonarem voluntariamente as pradarias onde viviam seus antepassados. Nem mesmo quando foram impelidos para o Norte e para o Oeste, puderam os semitas e os arianos se retirar para as regiões florestais do oeste da Ásia e da Europa antes que o cultivo de cereais, neste solo menos favorável, lhes permitisse alimentar seus rebanhos, sobretudo no inverno. É mais do que provável que o cultivo de cereais nascesse aqui, primeiramente, da necessidade de proporcionar forragem aos animais, e que só mais tarde tivesse importância para a ali-mentação do homem.
Talvez a evolução superior dos arianos e dos semitas se deva à abundância de carne e leite em sua alimentação e, particularmente, pela benéfica influência desses alimentos no desenvolvimento das crianças. Com efeito, os índios "pueblos" do Novo México, que se vêem reduzidos a uma alimentação quase exclusivamente vegetal, têm o cérebro menor que o dos índios da fase inferior da barbárie, que comem mais carne e mais peixe. Em todo caso, nessa fase desaparece, pouco a pouco, a antropofagia, que não sobrevive senão como- um rito religioso, ou como um sortilégio, o que dá quase no mesmo.

FASE SUPERIOR. Inicia-se com a fundição do minério de ferro, e passa à fase da civilização com a invenção da escrita alfabética e seu emprego para registros literários. Essa fase, que, como dissemos, só existiu de maneira independente no hemisfério oriental, supera todas as anteriores juntas, quanto aos progressos da produção. A ela pertencem os gregos da época heróica, as tribos ítalas de pouco antes da fundação de Roma, os germanos de Tácito, os normandos do tempo dos vikings.
Antes de mais nada, encontramos aqui, pela primeira vez, o arado de ferro puxado por animais, o que torna possível lavrar a terra em grande escala — a agricultura — e produz, dentro das condições então existentes, um aumento pratica-mente quase ilimitado dos meios de existência; em relação com isso, também observamos a derrubada dos bosques e sua trans-formação em pastagens e terras cultiváveis, coisa impossível em grande escala sem a pá e o machado de ferro.Tudo isso acarretou um rápido aumento da população, que se instala, densamente, em pequenas áreas. Antes do cultivo dos campos somente circunstâncias excepcionais teriam podido reunir meio milhão de homens sob uma direção central — e é de se crer que isso jamais tenha acontecido.
Nos poemas homéricos, principalmente na Ilíada, encon-tramos a época mais florescente da fase superior da barbárie. A principal herança que os gregos levaram da barbárie para a civilização é constituída dos instrumentos de ferro aperfei-çoados, dos foles de forja, do moinho a mão, da roda de olaria, da preparação do azeite e o vinho, do trabalho de metais elevado à categoria de arte, de carretas e carros de guerra, da construção de barcos com pranchas e vigas, dos princípios de arquitetura como arte, das cidades amuralhadas com torres e ameias, das epopeias homéricas e de toda a mitologia. Se compararmos com isso as descrições feitas por César, e até por Tácito, dos germanos, que se achavam nos umbrais da fase de cultura da qual os gregos de Homero se dispunham a passar para um estágio mais elevado, veremos como foi esplêndido o desenvolvimento da produção na fase superior da barbárie.
O quadro do desenvolvimento da humanidade através do estado selvagem e da barbárie, até os começos da civilização — quadro que acabo de esboçar, seguindo Morgan — já é bastante rico em traços característicos novos e, sobretudo, indis-cutíveis, porquanto diretamente tirados da produção. No entanto, parecerá obscuro e incompleto se o compararmos com aquele que se há de descortinar diante de nós, ao fim de nossa viagem; só então será possível apresentar com toda a clareza a passagem da barbárie à civilização e o forte contraste entre as duas. Por ora, podemos generalizar a classificação de Morgan da forma seguinte: Estado Selvagem. — Período em que predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos para ser utilizados; as produções artificiais do homem ,são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie — Período em que aparecem a criação de gado e a- agricul-tura, e se aprende a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho humano. Civilização — Período em que o homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais, período da indústria propriamente dita e da arte.

ENGELS. Friederich. Origem da família, da propriedade privada e do estado. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro.1997.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

O Mito da Caverna


O Mito da Caverna
SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem.
GLAUCO - Imagino tudo isso.
SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio.
GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!
SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?
GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida.
SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras?
GLAUCO - Não.
SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam?
GLAUCO - Sem dúvida.
SÓCRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos?
GLAUCO - Claro que sim.
SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram.
GLAUCO - Necessariamente.
SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados?
GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.
SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais?
GLAUCO - A princípio nada veria.
SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.
GLAUCO - Não há dúvida.
SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.
GLAUCO - Fora de dúvida.
SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.
GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões.
SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?
GLAUCO - Evidentemente.
SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?
GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.
SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto?
GLAUCO - Por certo que o fariam.
SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos. (...)
PLATÃO. A República, livro VII. Nova Cultural. 2002
Reflexão
A alegoria da caverna nos traz alguns questionamentos sobre a condição humana, e apesar deste texto ter quase mais de 2300 anos ele ainda é muito atual. Sobretudo ao iniciarmos um curso inteiramente novo com novos conceitos, metodologia e palavras.
Esse texto, antes de mais nada, traz um exercício de reflexão muito amplo. Pensemos em nossa caverna e como ela pode determinar a forma como vemos o mundo. Como nós recebemos o novo? Qual é o nosso comportamento diante das novas descobertas que transformam nossas vidas? Como as recompensas do cotidiano nos impedem de enxergar novas formas de conhecimento.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Todo Mundo Explica
Raul Seixas

Não me pergunte por que
Quem-Como-Onde-Qual-Quando-O Que?
Deus, Buda, O tudo, O nada, O ocaso, O cosmo
Como o cosmonauta busca o nado, o nada
Seja lá o que for, já é

Não me obrigue a comer
O seu escreveu não leu
Papai nos deu a cabeça
Do Dr. Sugismundo
Porque sem querer cantou de galo
Cada cabeça é um mundo Gismundo
Antes de ler o livro que o guru lhe deu
Você tem que escrever o seu

Chega um ponto que eu sinto que eu pressinto
Lá dentro, não do corpo, mas lá dentro-fora
No coração e no sol, no meu peito eu sinto
Na estrela, na testa, eu farejo em todo o universo
Que eu to vivo
Que eu to vivo
Que eu to vivo, vivo, vivo como uma rocha
E eu não pergunto
Porque já sei que a vida não é uma resposta
E se eu aconteço aqui se deve ao fato de eu
simplesmente ser
Se deve ao fato de eu simplesmente

Mas todo mundo explica
Explica, Freud, o padre explica, Krishnamurti tá
vendendo
A explicação na livraria, que lhe faz a prestação
Que tem Platão que explica, que explica tudo tão bem vai lá que
Todo mundo explica
protestante, o auto-falante, o zen-budismo,
Brahma, Skol
Capitalismo oculta um cofre de fá, fé, fi, finalismo
Hare Krishna, e dando a dica enquanto aquele
papagaio
Curupaca e implica
Com o carimbo positivo da ciência que aprova
e classifica

O que é que a ciência tem?
Tem lápis de calcular
Que é mais que a ciência tem?
Borracha prá depois apagar
Você já foi ao espelho, nego?
Não?
Então vá!