quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Origens da Sociedade
I — ESTÁGIOS PRÉ-HISTÓRICOS DE CULTURA
Morgan foi o primeiro que, com conhecimento de causa, tratou de introduzir uma ordem precisa na pré-história da hu-manidade, e sua classificação permanecerá certamente em vigor até que uma riqueza de dados muito mais considerável nos obrigue a modificá-la.
Das três épocas principais — estado selvagem, barbárie e civilização — ele só se ocupa, naturalmente, das duas pri-meiras e da passagem à terceira. Subdivide cada uma das duas nas fases inferior, média e superior, de acordo com os progressos obtidos na produção dos meios de existência; porque, diz, "a habilidade nessa produção desempenha um papel decisivo no grau de superioridade e domínio do homem sobre a natureza: o homem é, de todos os seres, o único que logrou um domínio quase absoluto da produção de alimentos. Todas as grandes épocas de progresso da humanidade coin-cidem, de modo mais ou menos direto, com as épocas em que se ampliam as fontes de existência". O desenvolvimento da família realiza-se paralelamente, mas não oferece critérios tão conclusivos para a delimitação dos períodos.

l — Estado selvagem
FASE INFERIOR. Infância do género humano. Os homens permaneciam, ainda, nos bosques tropicais ou subtropicais e viviam, pelo menos parcialmente, nas árvores; só isso explica que continuassem a existir, em meio às grandes feras selvagens. Os frutos, as nozes e as raízes serviam de alimento; o prin-cipal progresso desse período é a formação da linguagem arti-culada. Nenhum dos povos conhecidos no período histórico estava nessa fase primitiva de evolução. E, embora esse pe-ríodo tenha durado, provavelmente, muitos milénios, não po-demos demonstrar sua existência baseando-nos em testemunhos diretos; mas, se admitimos que o homem procede do reino animal, devemos aceitar, necessariamente, esse estado tran-sitório.

FASE MÉDIA. Começa com o emprego dos peixes (incluímos aqui também os crustáceos, moluscos e outros animais aquá-ticos) na alimentação e com o uso do fogo. Os dois fenó-menos são complementares, porque o peixe só pode ser plena-mente empregado como aumento graças ao fogo. Com esta nova alimentação, porém, os homens fizeram-se independentes do clima e da localidade; seguindo o curso dos rios e as costas dos mares, puderam, ainda no estado selvagem, espalhar-se sobre a maior parte da superfície da Terra. Os toscos instru-mentos de pedra sem polimento da primitiva Idade da Pedra, conhecidos com o nome de paleolíticos, pertencem todos, ou a maioria deles, a esse período e se encontram espalhados por todos os continentes, constituindo uma prova dessas migrações. O povoamento de novos lugares e o incessante afã de novos descobrimentos, ligados à posse do fogo, que se obtinha pelo atrito, levaram ao emprego de novos alimentos, como as raízes e os tubérculos farináceos, cozidos em cinza quente ou em buracos no chão, e também a caça, que, com a invenção das primeiras armas — a clava e a lança — chegou a ser um ali-mento suplementar ocasional. Povos exclusivamente caçadores, como se afirma nos livros, quer dizer, povos que tenham vivido apenas da caça, jamais existiram, pois os frutos da mesma eram demasiado problemáticos. Como consequência da incerteza quanto às fontes de alimentação, parece ter nascido, nessa época, a antropofagia, para subsistir por muito tempo. Nessa fase média do estado selvagem, encontram-se, ainda em nossos dias, os australianos e diversos polinésios.

FASE SUPERIOR. Começa com a invenção do arco e da flecha, graças aos quais os animais caçados vêm a ser um alimento regular e a caça uma das ocupações normais e costumeiras. O arco, a corda e a seta já constituíam um instrumento bas-tante complexo, cuja invenção pressupõe larga experiência acumulada e faculdades mentais desenvolvidas, bem como o conhecimento simultâneo de diversas outras invenções. Se comparamos os povos que conhecem o arco e a flecha, mas ignoram a arte da cerâmica (com a qual, segundo Morgan, começa a passagem à barbárie), encontramos já alguns indí-cios de residência fixa em aldeias e certa habilidade na pro-dução de meios de subsistência, vasos e utensílios de madeira, o tecido a mão (sem tear) com fibras de cortiça, cestos de cortiça ou junco trançados, instrumentos de pedra polida (neolíticos). Na maioria dos casos, o fogo e o machado de pedra já permitiam a construção de pirogas feitas com um só tronco de árvore e, em certas regiões, a feitura de pranchas e vigas necessárias à edificação de casas. Todos esses progressos
são encontrados, por exemplo, entre os índios do noroeste da América, que conheciam o arco e a flecha, mas não a cerâ-mica. O arco e a flecha foram, para a época selvagem, o que a espada de ferro foi para a barbárie e a arma de fogo para a civilização: a arma decisiva.

II — A barbárie
FASE INFERIOR. Inicia-se com a introdução da cerâmica. Ë possível demonstrar que, em muitos casos, provavelmente em todos os lugares, nasceu do costume de cobrir com argila os cestos ou vasos de madeira, a fim de torná-los refratários ao fogo; logo descobriu-se que a argila moldada dava o mesmo resultado, sem necessidade do vaso interior.
Até aqui, temos podido considerar o curso do desenvol-vimento como um fenómeno absolutamente geral, válido em determinado período para todos os povos, sem distinção de lugar. Mas, com a barbárie, chegamos a uma época em que se começa a fazer sentir a diferença de condições naturais entre os dois grandes continentes. O traço característico do período da barbárie é a domestícação e criação de animais e o cultivo de plantas. Pois bem: o continente oriental, o chamado mundo antigo, tinha quase todos os animais domesti-cáveis e todos os cereais próprios para o cultivo, exceto um; o continente ocidental, a América, só tinha um mamífero domesticável, a lhama, — e, mesmo assim, apenas numa parte do sul — e um só dos cereais cultiváveis, mas o melhor, o milho. Em virtude dessas condições naturais diferentes, a partir desse momento a população de cada hemisfério se desen-volve de maneira particular, e os sinais nas linhas de fronteira entre as várias fases são diferentes em cada um dos dois casos.

FASE MEDIA. No Leste, começa com a domesticação de animais; no Oeste, com o cultivo de hortaliças por meio de irrigação e com o emprego do tijolo cru (secado ao Sol) e da pedra nas construções.
Comecemos pelo Oeste, porque, nessa região, essa fase não tinha sido superada, em parte alguma, até a conquista da América pêlos europeus.
Entre os índios da fase inferior da barbárie (figuram aqui todos os que vivem a leste do Mississipi) existia, já na época de seu descobrimento, algum cultivo do milho e, talvez, da abóbora, do melão e de outras plantas de horta, que consti-tuíam parte muito essencial de sua alimentação; eles viviam em casas de madeira, em aldeias protegidas por paliçadas. As tribos do Noroeste, principalmente as do vale do rio Colúmbia, achavam-se, ainda, na fase superior do estado selva-gem e não conheciam a cerâmica nem o mais simples cultivo de plantas. Ao contrário, os índios dos chamados "pueblos" no Novo México, os mexicanos, os centro-americanos e os peruanos da época da conquista, achavam-se na fase média da barbárie; viviam em casas de adobe ou pedra em forma de fortalezas; cultivavam em plantações artificialmente irrigadas o milho e outros vegetais comestíveis, diferentes de acordo com o lugar e o clima, que eram a sua principal fonte de ali-mentação; e tinham até domesticado alguns animais: os mexi-canos, o peru e outras aves; os peruanos, a lhama. Sabiam, além disso, trabalhar os metais, exceto o ferro; — por isso ainda não podiam prescindir de suas armas e instrumentos de pedra. A conquista espanhola cortou completamente todo desenvol-vimento autónomo ulterior.
No Leste, a fase média da barbárie começou com a domesticação de animais para o fornecimento de leite e carne, enquanto que, segundo parece, o cultivo de plantas perma-neceu desconhecido ali até bem adiantada esta fase. A domesticação de animais, a criação de gado e a formação de grandes rebanhos parecem ter sido a causa de que os arianos e semitas se afastassem dos demais bárbaros. Os nomes com que os arianos da Europa e os da Ásia designam os animais ainda são comuns, mas os nomes com que designam as plantas culti-vadas são quase sempre diferentes.
A formação de rebanhos levou, nos lugares adequados, à vida pastoril; os semitas, nas pradarias do Tibre e do Eufrates; os arianos, nos campos da índia, de Oxus e Jaxartes,* do Don e do Dniepr. Foi, pelo visto, nessas terras ricas em pastos que, pela primeira vez, se conseguiu domesticar animais. Por isso, parece às gerações posteriores que os povos pastores pro-cediam de áreas que, na realidade, longe de terem sido o berço do género humano, eram quase inabitáveis para os seus sel-vagens avós e até para os homens da fase inferior da barbárie. E, ao contrário, desde que esses bárbaros da fase média se habituaram à vida pastoril, jamais lhes ocorreria a ideia de abandonarem voluntariamente as pradarias onde viviam seus antepassados. Nem mesmo quando foram impelidos para o Norte e para o Oeste, puderam os semitas e os arianos se retirar para as regiões florestais do oeste da Ásia e da Europa antes que o cultivo de cereais, neste solo menos favorável, lhes permitisse alimentar seus rebanhos, sobretudo no inverno. É mais do que provável que o cultivo de cereais nascesse aqui, primeiramente, da necessidade de proporcionar forragem aos animais, e que só mais tarde tivesse importância para a ali-mentação do homem.
Talvez a evolução superior dos arianos e dos semitas se deva à abundância de carne e leite em sua alimentação e, particularmente, pela benéfica influência desses alimentos no desenvolvimento das crianças. Com efeito, os índios "pueblos" do Novo México, que se vêem reduzidos a uma alimentação quase exclusivamente vegetal, têm o cérebro menor que o dos índios da fase inferior da barbárie, que comem mais carne e mais peixe. Em todo caso, nessa fase desaparece, pouco a pouco, a antropofagia, que não sobrevive senão como- um rito religioso, ou como um sortilégio, o que dá quase no mesmo.

FASE SUPERIOR. Inicia-se com a fundição do minério de ferro, e passa à fase da civilização com a invenção da escrita alfabética e seu emprego para registros literários. Essa fase, que, como dissemos, só existiu de maneira independente no hemisfério oriental, supera todas as anteriores juntas, quanto aos progressos da produção. A ela pertencem os gregos da época heróica, as tribos ítalas de pouco antes da fundação de Roma, os germanos de Tácito, os normandos do tempo dos vikings.
Antes de mais nada, encontramos aqui, pela primeira vez, o arado de ferro puxado por animais, o que torna possível lavrar a terra em grande escala — a agricultura — e produz, dentro das condições então existentes, um aumento pratica-mente quase ilimitado dos meios de existência; em relação com isso, também observamos a derrubada dos bosques e sua trans-formação em pastagens e terras cultiváveis, coisa impossível em grande escala sem a pá e o machado de ferro.Tudo isso acarretou um rápido aumento da população, que se instala, densamente, em pequenas áreas. Antes do cultivo dos campos somente circunstâncias excepcionais teriam podido reunir meio milhão de homens sob uma direção central — e é de se crer que isso jamais tenha acontecido.
Nos poemas homéricos, principalmente na Ilíada, encon-tramos a época mais florescente da fase superior da barbárie. A principal herança que os gregos levaram da barbárie para a civilização é constituída dos instrumentos de ferro aperfei-çoados, dos foles de forja, do moinho a mão, da roda de olaria, da preparação do azeite e o vinho, do trabalho de metais elevado à categoria de arte, de carretas e carros de guerra, da construção de barcos com pranchas e vigas, dos princípios de arquitetura como arte, das cidades amuralhadas com torres e ameias, das epopeias homéricas e de toda a mitologia. Se compararmos com isso as descrições feitas por César, e até por Tácito, dos germanos, que se achavam nos umbrais da fase de cultura da qual os gregos de Homero se dispunham a passar para um estágio mais elevado, veremos como foi esplêndido o desenvolvimento da produção na fase superior da barbárie.
O quadro do desenvolvimento da humanidade através do estado selvagem e da barbárie, até os começos da civilização — quadro que acabo de esboçar, seguindo Morgan — já é bastante rico em traços característicos novos e, sobretudo, indis-cutíveis, porquanto diretamente tirados da produção. No entanto, parecerá obscuro e incompleto se o compararmos com aquele que se há de descortinar diante de nós, ao fim de nossa viagem; só então será possível apresentar com toda a clareza a passagem da barbárie à civilização e o forte contraste entre as duas. Por ora, podemos generalizar a classificação de Morgan da forma seguinte: Estado Selvagem. — Período em que predomina a apropriação de produtos da natureza, prontos para ser utilizados; as produções artificiais do homem ,são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie — Período em que aparecem a criação de gado e a- agricul-tura, e se aprende a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho humano. Civilização — Período em que o homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais, período da indústria propriamente dita e da arte.

ENGELS. Friederich. Origem da família, da propriedade privada e do estado. Bertrand Brasil. Rio de Janeiro.1997.

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

O Mito da Caverna


O Mito da Caverna
SÓCRATES – Figura-te agora o estado da natureza humana, em relação à ciência e à ignorância, sob a forma alegórica que passo a fazer. Imagina os homens encerrados em morada subterrânea e cavernosa que dá entrada livre à luz em toda extensão. Aí, desde a infância, têm os homens o pescoço e as pernas presos de modo que permanecem imóveis e só vêem os objetos que lhes estão diante. Presos pelas cadeias, não podem voltar o rosto. Atrás deles, a certa distância e altura, um fogo cuja luz os alumia; entre o fogo e os cativos imagina um caminho escarpado, ao longo do qual um pequeno muro parecido com os tabiques que os pelotiqueiros põem entre si e os espectadores para ocultar-lhes as molas dos bonecos maravilhosos que lhes exibem.
GLAUCO - Imagino tudo isso.
SÓCRATES - Supõe ainda homens que passam ao longo deste muro, com figuras e objetos que se elevam acima dele, figuras de homens e animais de toda a espécie, talhados em pedra ou madeira. Entre os que carregam tais objetos, uns se entretêm em conversa, outros guardam em silêncio.
GLAUCO - Similar quadro e não menos singulares cativos!
SÓCRATES - Pois são nossa imagem perfeita. Mas, dize-me: assim colocados, poderão ver de si mesmos e de seus companheiros algo mais que as sombras projetadas, à claridade do fogo, na parede que lhes fica fronteira?
GLAUCO - Não, uma vez que são forçados a ter imóveis a cabeça durante toda a vida.
SÓCRATES - E dos objetos que lhes ficam por detrás, poderão ver outra coisa que não as sombras?
GLAUCO - Não.
SÓCRATES - Ora, supondo-se que pudessem conversar, não te parece que, ao falar das sombras que vêem, lhes dariam os nomes que elas representam?
GLAUCO - Sem dúvida.
SÓCRATES - E, se, no fundo da caverna, um eco lhes repetisse as palavras dos que passam, não julgariam certo que os sons fossem articulados pelas sombras dos objetos?
GLAUCO - Claro que sim.
SÓCRATES - Em suma, não creriam que houvesse nada de real e verdadeiro fora das figuras que desfilaram.
GLAUCO - Necessariamente.
SÓCRATES - Vejamos agora o que aconteceria, se livrassem a um tempo das cadeias e do erro em que laboravam. Imaginemos um destes cativos desatado, obrigado a levantar-se de repente, a volver a cabeça, a andar, a olhar firmemente para a luz. Não poderia fazer tudo isso sem grande pena; a luz, sobre ser-lhe dolorosa, o deslumbraria, impedindo-lhe de discernir os objetos cuja sombra antes via. Que te parece agora que ele responderia a quem lhe dissesse que até então só havia visto fantasmas, porém que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, via com mais perfeição? Supõe agora que, apontando-lhe alguém as figuras que lhe desfilavam ante os olhos, o obrigasse a dizer o que eram. Não te parece que, na sua grande confusão, se persuadiria de que o que antes via era mais real e verdadeiro que os objetos ora contemplados?
GLAUCO - Sem dúvida nenhuma.
SÓCRATES - Obrigado a fitar o fogo, não desviaria os olhos doloridos para as sombras que poderia ver sem dor? Não as consideraria realmente mais visíveis que os objetos ora mostrados?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se o tirassem depois dali, fazendo-o subir pelo caminho áspero e escarpado, para só o liberar quando estivesse lá fora, à plena luz do sol, não é de crer que daria gritos lamentosos e brados de cólera? Chegando à luz do dia, olhos deslumbrados pelo esplendor ambiente, ser-lhe ia possível discernir os objetos que o comum dos homens tem por serem reais?
GLAUCO - A princípio nada veria.
SÓCRATES - Precisaria de algum tempo para se afazer à claridade da região superior. Primeiramente, só discerniria bem as sombras, depois, as imagens dos homens e outros seres refletidos nas águas; finalmente erguendo os olhos para a lua e as estrelas, contemplaria mais facilmente os astros da noite que o pleno resplendor do dia.
GLAUCO - Não há dúvida.
SÓCRATES - Mas, ao cabo de tudo, estaria, decerto, em estado de ver o próprio sol, primeiro refletido na água e nos outros objetos, depois visto em si mesmo e no seu próprio lugar, tal qual é.
GLAUCO - Fora de dúvida.
SÓCRATES - Refletindo depois sobre a natureza deste astro, compreenderia que é o que produz as estações e o ano, o que tudo governa no mundo visível e, de certo modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna.
GLAUCO - É claro que gradualmente chegaria a todas essas conclusões.
SÓCRATES - Recordando-se então de sua primeira morada, de seus companheiros de escravidão e da idéia que lá se tinha da sabedoria, não se daria os parabéns pela mudança sofrida, lamentando ao mesmo tempo a sorte dos que lá ficaram?
GLAUCO - Evidentemente.
SÓCRATES - Se na caverna houvesse elogios, honras e recompensas para quem melhor e mais prontamente distinguisse a sombra dos objetos, que se recordasse com mais precisão dos que precediam, seguiam ou marchavam juntos, sendo, por isso mesmo, o mais hábil em lhes predizer a aparição, cuidas que o homem de que falamos tivesse inveja dos que no cativeiro eram os mais poderosos e honrados? Não preferiria mil vezes, como o herói de Homero, levar a vida de um pobre lavrador e sofrer tudo no mundo a voltar às primeiras ilusões e viver a vida que antes vivia?
GLAUCO - Não há dúvida de que suportaria toda a espécie de sofrimentos de preferência a viver da maneira antiga.
SÓCRATES - Atenção ainda para este ponto. Supõe que nosso homem volte ainda para a caverna e vá assentar-se em seu primitivo lugar. Nesta passagem súbita da pura luz à obscuridade, não lhe ficariam os olhos como submersos em trevas?
GLAUCO - Certamente.
SÓCRATES - Se, enquanto tivesse a vista confusa -- porque bastante tempo se passaria antes que os olhos se afizessem de novo à obscuridade -- tivesse ele de dar opinião sobre as sombras e a este respeito entrasse em discussão com os companheiros ainda presos em cadeias, não é certo que os faria rir? Não lhe diriam que, por ter subido à região superior, cegara, que não valera a pena o esforço, e que assim, se alguém quisesse fazer com eles o mesmo e dar-lhes a liberdade, mereceria ser agarrado e morto?
GLAUCO - Por certo que o fariam.
SÓCRATES - Pois agora, meu caro GLAUCO, é só aplicar com toda a exatidão esta imagem da caverna a tudo o que antes havíamos dito. O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes, já que o queres saber, é este, pelo menos, o meu modo de pensar, que só Deus sabe se é verdadeiro. Quanto à mim, a coisa é como passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a idéia do bem, a qual só com muito esforço se pode conhecer, mas que, conhecida, se impõe à razão como causa universal de tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível, autora da inteligência e da verdade no mundo invisível, e sobre a qual, por isso mesmo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negócios particulares e públicos. (...)
PLATÃO. A República, livro VII. Nova Cultural. 2002
Reflexão
A alegoria da caverna nos traz alguns questionamentos sobre a condição humana, e apesar deste texto ter quase mais de 2300 anos ele ainda é muito atual. Sobretudo ao iniciarmos um curso inteiramente novo com novos conceitos, metodologia e palavras.
Esse texto, antes de mais nada, traz um exercício de reflexão muito amplo. Pensemos em nossa caverna e como ela pode determinar a forma como vemos o mundo. Como nós recebemos o novo? Qual é o nosso comportamento diante das novas descobertas que transformam nossas vidas? Como as recompensas do cotidiano nos impedem de enxergar novas formas de conhecimento.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Todo Mundo Explica
Raul Seixas

Não me pergunte por que
Quem-Como-Onde-Qual-Quando-O Que?
Deus, Buda, O tudo, O nada, O ocaso, O cosmo
Como o cosmonauta busca o nado, o nada
Seja lá o que for, já é

Não me obrigue a comer
O seu escreveu não leu
Papai nos deu a cabeça
Do Dr. Sugismundo
Porque sem querer cantou de galo
Cada cabeça é um mundo Gismundo
Antes de ler o livro que o guru lhe deu
Você tem que escrever o seu

Chega um ponto que eu sinto que eu pressinto
Lá dentro, não do corpo, mas lá dentro-fora
No coração e no sol, no meu peito eu sinto
Na estrela, na testa, eu farejo em todo o universo
Que eu to vivo
Que eu to vivo
Que eu to vivo, vivo, vivo como uma rocha
E eu não pergunto
Porque já sei que a vida não é uma resposta
E se eu aconteço aqui se deve ao fato de eu
simplesmente ser
Se deve ao fato de eu simplesmente

Mas todo mundo explica
Explica, Freud, o padre explica, Krishnamurti tá
vendendo
A explicação na livraria, que lhe faz a prestação
Que tem Platão que explica, que explica tudo tão bem vai lá que
Todo mundo explica
protestante, o auto-falante, o zen-budismo,
Brahma, Skol
Capitalismo oculta um cofre de fá, fé, fi, finalismo
Hare Krishna, e dando a dica enquanto aquele
papagaio
Curupaca e implica
Com o carimbo positivo da ciência que aprova
e classifica

O que é que a ciência tem?
Tem lápis de calcular
Que é mais que a ciência tem?
Borracha prá depois apagar
Você já foi ao espelho, nego?
Não?
Então vá!