quinta-feira, 15 de março de 2007


SIGNIFICADO DA SOCIEDADE HUMANA
O que é a sociedade humana? Mais exatamente, o que é uma sociedade humana? Vimos que para Spencer a socie-dade humana é comparável a um organismo vivo com fun-ções semelhantes às encontradas num ser orgânico. Em Prin-cipies of Sociology, Spencer estendeu-se bastante na elabo-ração dessa analogia. Afirmou que o organismo biológico e a sociedade se subordinam a processos de crescimento e de-clínio, ambos consistem em partes interdependentes, ambos possuem um sistema regulador — o sistema nervoso no ani-mal e o sistema governamental na sociedade — e até um sis-tema distributivo, formado pelo sistema circulatório no pri-meiro, e pelo sistema de comunicações no segundo. Embora Spencer afirmasse que essa analogia deveria ser encarada como uma simples ilustração, e salientasse as importantes di-ferenças existentes entre os organismos biológico e social, ele utilizou a analogia para analisar muitos fenómenos sociais.
Alguns contemporâneos de Spencer, notadamente o so-ciólogo e filósofo russo-alemão Paul von Lilienfeld, foram mais adiante na tentativa de comparar a sociedade com um organismo vivo. Para Lilienfeld, a sociedade é um organis-mo vivo com todas as suas características, inclusive a multi-plicação, crescimento, metabolismo, doença e morte. A socie-dade é para ele apenas o mais avançado e complexo dos or-ganismos. Outros que aceitaram a visão de sociedade como um ser orgânico são o sociólogo e estadista alemão Albert G. F. Schãffle, o sociólogo francês René Worms e o soció-logo russo-francês Jacques Novicow, cada um desenvolven-do a ideia de maneira própria. Todos esses escritores per-tencem à chamada escola bioorganicista.
A analogia organicista de Spencer recebeu várias crí-ticas de seus contemporâneos. Entre os que rejeitaram a visão da sociedade comparável a um organismo está o eminente so-ciólogo russo Nikolai K. Mikhailovsky. Ele argumentava que a sociedade, em vez de ser um organismo, era uma "coorde-nação de organismos indivisíveis", cada um deles com ór-gãos próprios e realizando uma totalidade de funções. En-quanto no organismo, escreveu ele, o todo, e não suas partes constitutivas, sofre ou experimenta prazer, na sociedade ape-nas os seus membros podem ter consciência de dor ou prazer. Não se pode. portanto, considerá-los análogos, embora haja semelhanças entre ambos, particularmente quanto aos pro-cessos de mudança.
A alegação de que a sociedade é um organismo é, no momento, totalmente desacreditada. O fato de que a socie-dade se compõe de indivíduos que são entidades biológicas não a torna uma entidade possuidora das características de seus componentes. Poder-se-ia afirmar, também, que a or-ganização comercial é um organismo biológico porque é com-posta de indivíduos que são entidades biológicas.
A sociedade tem sido definida de diferentes maneiras. Sumner e Keller, em The Science of Society, consideraram a sociedade "um grupo de seres humanos vivendo em esforço cooperativo para a subsistência e perpetuação da espécie", enquanto o sociólogo fino-inglês Edward Westermarck a entendia simplesmente, mas de maneira mais vaga, como um grupo de indivíduos que levam uma vida de cooperação. Giddings, por outro lado, em Readings in Descriptive and Historical Sociology, definiu a sociedade como "um grupo de indivíduos que cooperam para a realização de qualquer as-sunto de interesse ou utilidade comum". Robert Maclver, em Sociology, descreveu a sociedade como "um sistema de rela-ções sociais no qual e através do qual vivemos", enquanto o sociólogo italiano Vilfredo Pareto a encarava como um agre-gado de moléculas humanas vivendo em relacionamento mútuo.
Esclarecendo melhor essas várias opiniões, talvez pos-samos dizer que a sociedade é um grupo de pessoas unidas por tradições, costumes e modos de viver comuns, ou uma cultura comum, em que existe entre seus membros uma consciência de grupo. Essa última característica, o senso de per-tencer ao grupo, foi acentuado por Maclver e Giddings. De-ve-se acrescentar que o termo sociedade é usado pêlos so-ciólogos em sentido amplo e restrito. No sentido mais amplo, inclui a raça humana como um todo, mas no sentido restrito — usado com mais frequência — refere-se a grupos que va-riam em tamanho desde um pequeno número de famílias, constituindo uma tribo primitiva, às modernas nações de cen-tenas de milhões de pessoas. Assim, o sociólogo fala de so-ciedade humana e, ao mesmo tempo, de sociedade zulu, caraíba, esquimó, albanesa, hindu, mexicana ou americana. Uma sociedade nesse sentido, além disso, inclui uma grande va-riedade de grupamentos menores, como grupos de idade e sexo, classes económicas ou sociais, grupos ocupacionais e comunidades.

TEORIAS DA ORIGEM DA SOCIEDADE HUMANA
É extremamente difícil, se não impossível, descobrir ori-gens em assuntos humanos, no sentido de averiguar exatamente o que aconteceu no princípio. A ciência abandonou a procura das primeiras origens, deixando esse problema para os filósofos especulativos, e satisfazendo-se com relações causais. O cientista social espera chegar a inferências razoa-velmente bem fundadas, e não a certezas, quanto aos vários aspectos ou fases da vida social, e à vida social em si mes-ma. O início é nebuloso, e muitos elos da corrente talvez não venham jamais a ser encontrados. Por isso, as explica-ções relativas às origens da sociedade são muitas e di-vergentes.

Concepções dos Filósofos Antigos e Modernos
Podemos encontrar, na Antiguidade, uma vaga concep-ção de um tipo de processo evolucionista no pensamento dos filósofos gregos. Nas obras de Platão e Aristóteles encon-tra-se tanto a ideia de mudança social, quanto o conceito de progresso. Centenas de anos mais tarde, o poeta romano Lucrécio, escrevendo no século I, expressou, em De rerum navarum, a ideia de evolução não somente das coisas materiais, mas também dos assuntos sociais. O maior desenvolvimento desse conceito, contudo, só foi feito séculos mais tarde. No século XVII, encontra-se, novamente, a noção de evolução social nas interpretações dos filósofos. Essas teorias baseavam-se, naturalmente, quase todas na especulação. Assim, o filósofo inglês Thomas Hobbes, um dos primeiros de uma série de pensadores dos séculos XVII e XVIII preocupados com a origem dos fenómenos, inclusive da sociedade huma-na, concluiu que o homem foi, de início, pouco mais do que um selvagem, levando uma vida isolada e egoísta, visando apenas à satisfação de seus próprios desejos e impulsos. O homem primitivo estava sempre em guerra com os outros ho-mens, e vivia no terror perene de ser atacado e morto pêlos vizinhos. Com o tempo, no entanto, compreendeu que, reu-nindo-se em bandos e concordando em viver em paz com os vizinhos, seria capaz de livrar-se das condições insuportá-veis em que se encontrava. A sociedade organizada emergiu desse período da existência humana.
Um contemporâneo de Hobbes, John Locke, divergiu dele ao representar o estado original do homem como sendo mais pacífico do que beligerante. Mas afirmou igualmente que, para progredir, o homem teve que reunir-se em grandes gru-pos, em vez de viver em famílias isoladas e pequenos bandos, que, para ele, foram a forma original da vida grupai. Opinião semelhante foi manifestada pelo filósofo francês do sé-culo XVIII Jean-Jacques Rousseau. Considerando o estado original do homem nem bom, nem mau, mas simplesmente "natural", ele o imaginou, entretanto, como fundamentalmen-te selvagem e cruel, até que o homem entrou em acordo com seus semelhantes para viver em paz e, assim, aprendeu a controlar-se. Como esses escritores, e alguns outros de me-nor importância, conceberam a sociedade humana como sen-do o resultado de um tipo de acordo ou "contrato" feito pêlos homens, eles são conhecidos como expoentes da teoria do contrato social da sociedade humana. Concepções dos Primeiros Pensadores Sociais e Sociólogos
Baseando ainda sua teoria da origem da sociedade hu-mana na especulação, o pensador italiano Viço chegou a con-clusões bastante artificiais sobre o princípio da associação humana. Afirmou, precisamente, que o homem, desde o início, viveu em grupos. Em determinado período, no entanto, as re-lações sociais degeneraram, forçando o homem a viver num estado anti-social, bárbaro e cruel, do qual emergiu tomando consciência de uma presença divina e do consequente senti-mento de vergonha. Montesquieu, por outro lado, acreditava que o homem fora levado à vida associativa pelo medo das opressivas forças naturais, diante das quais se sentia desam-parado e só. Na interpretação desses autores, e na dos adep-tos da escola do contrato social, está implícita a ideia da evolução e progresso.
O francês Condorcet foi mais específico em sua formu-lação de uma teoria da evolução e progresso. Em Esquisse d'un tableau historique dês progrès de iesprit humain, propôs uma teoria da evolução social em estágios, segundo a qual a civili-zação passara por dez estágios de desenvolvimento, cada um mais elevado do que o anterior, sendo que o mais alto de todos estaria ainda por atingir. Com essa teoria, Condorcet antecipou o "primeiro" sociólogo, Comte, embora este o negasse.

Teorias de Comte e Spencer

Já mencionamos a teoria dos três estágios de Comte, pêlos quais a humanidade presumivelmente passa. Comte suplementou essa teoria, relativa principalmente ao desenvol-vimento intelectual, com outra, segundo a qual a história hu-mana passa de uma era Militar para uma Legalista e dessa a uma Industrial, correspondendo aos estágios Teológico, Metafísico e Positivo. Em sua opinião, a sociedade surgiu como o resultado de uma necessidade premente de associa-ção dos seres humanos, que se desenvolveu segundo leis de-finidas. Comte acreditava que as sociedades existentes se encontram em estágios diferentes de desenvolvimento, desde o mais primitivo ao mais evoluído, e que, além disso, os vários aspectos da vida em qualquer sociedade podem estar em ní-veis diferentes. O progresso, afirmava ele, é inevitável, em-bora seja necessariamente gradual, lento e desigual; um estado de existência altamente desejável pode ser atingido através de determinadas reformas de longo alcance.
A teoria da evolução social teve seu desenvolvimento e elaboração mais altos com Herbert Spencer, considerado o pai do evolucionismo clássico. Deve-se recordar que Spencer con-siderava a sociedade semelhante a um organismo biológico. Outra teoria sua, mais rica e influente, asseverava que a so-ciedade se subordina às mesmas leis de evolução de todas as matérias, orgânicas ou inorgânicas. Em outras palavras, pode-se observar o mesmo processo evolutivo em todos os fenóme-nos, inclusive os sociais, que ele significativamente chamava de "superorgânicos" Sua teoria geral da evolução, englo-bando todos os fenómenos, é apresentada em First Principies, enquanto a teoria dos fenómenos superorgânicos, ou sociais, é tratada em detalhe em suas obras sociológicas, The Síudy o f Sociology e The Principies of Sociology.
Em resumo. Spencer afirmou que a sociedade humana. como os outros fenômenos, se desenvolveu de um estágio sim-ples para um complexo; a evolução foi lenta e gradual, em estágios bem definidos. Evolução significava para ele, em geral, progresso. A sociedade humana avançara de um esta-do selvagem para um estado civilizado, passando por vários níveis intermediários. As sociedades primitivas contemporâ-neas representavam para ele o homem num estágio social jo-vem e ainda não-desenvolvido. Sustentava, outrossim, que as sociedades atrasadas tendem a ser combativas; com seu progresso tendem a ser mais pacíficas, de modo que a indús-tria tende a substituir o militarismo. Adiantou ainda que as guerras primitivas produziram a integração necessária à for-mação dos grupos sociais. Spencer, entretanto, não encarava a evolução corno progresso contínuo, mas afirmava que há um limite, após o qual ocorre desintegração e morte. A desinte-gração também é gradual e implica um processo de evolução •o inverso. A evolução é, portanto, de natureza cíclica.
Segundo Spencer há um processo de equilibração envol-vido na evolução, o que siqnifica, no caso da sociedade, que há uma tendência para o alcance de um equilíbrio entre a sociedade e seu ambiente, entre uma sociedade e outra, e entre os vários grupos e forças sociais dentro de uma sociedade. O equilíbrio ocorre através da luta pela vida. Quando o equi-líbrio é atingido, a sociedade desfruta paz e liberdade. Como a sociedade e suas instituições estão sujeitas a um processo automático de evolução, Spencer concluiu que é inútil tentar mudar as condições, e os indivíduos devem ajustar-se ao status quo. Era um entusiástico defensor do laissez-faire, embora concordasse Jia possibilidade de reformas limitadas.
Entre os defensores da teoria da evolução linear e pro-gressiva estava Maksim M. Kovalevsky. Segundo este gran-de sociólogo russo, a sociedade humana passou por vários estágios bem definidos, até alcançar, finalmente, a ordem so-cial democrática, a mais alta que se conhece. O estágio mais primitivo da organização social foi a horda, fracamente or-ganizada como um sistema familiar, ou clã, matrilinear (um sistema no qual só se reconhece a filiação da linha feminina materna). A esse sucedeu um sistema patrilinear, ou de gens. O sistema de gens desenvolveu-se num tipo de organização feudal, que prevaleceu durante muito tempo em muitas so-ciedades antigas e modernas. O sistema feudal, finalmente, cedeu a uma ordem democrática marcada pela igualdade e liberdade.
Poucos sociólogos, se é que os há, aceitam a teoria da evolução social exposta por Spencer. As provas reunidas nas últimas décadas sobre as sociedades humanas não revelam tal padrão evolucionista. Quanto à analogia organicista, a comparação entre o desenvolvimento das sociedades humanas e as matérias orgânicas e inorgânicas é considerada sem valor. Até mesmo importantes biólogos darwinistas, como Thomas Huxley e Alfred Russel Wallace, discordaram da compara-ção de Spencer. A identificação da evolução com progresso também é rejeitada pela maioria dos sociólogos, pois é difícil determinar o que é progresso, principalmente nos aspectos não-materiais da vida humana. Tudo o que se pode perceber é a mudança — nenhuma sociedade é completamente estática — mas a mudança não implica necessariamente progresso. Os sociólogos preferem usar o termo "mudança" em vez de "evolução" Recentemente propôs-se uma versão diferente da ideia da evolução social, que pode ser considerada um "neoevolucionismo". Talvez os principais defensores dessa nova ver-são sejam os antropólogos Leslie A. White e V. Gordon Childe. Em Science of Cultue, White faz uma distinção en-tre o que denomina fases tecnológica, sociológica e ideológica de cultura. (As duas últimas dependem da primeira.) Uma cultura com eficiente sistema tecnológico é uma cultura evo-luída, enquanto outra com fraco sistema de utilização de energia é primitiva. Childe, em Social Evolation, afirmou que as culturas passam por três estágios bem definidos — selvageria, barbarismo e civilização — e subordinam-se a pro-cessos semelhantes aos que agem na evolução orgânica, isto é, hereditariedade, adaptação e seleção.
KOENIG, Samuel. Elementos de Sociologia. Rio de Janeiro, Zahar,1996
Exercícios
1-) Qual é a concepção de Spencer sobre a sociedade humana? Atualmente esta concepção é aceita por aqueles que estudam a sociedade?
2-) Qual destas concepções de sociedade apresentadas no texto você julga suficiente ?
3-) Qual ponto em comum tem a teoria de Spencer com o texto: Estágios pré-históricos de cultura. Podemos traçar um paralelo entre Spencer e Morgan?
4-) Aponte o ponto de equilíbrio que existe na sociedade, segundo a concepção de Spencer.
5-) “Spencer concluiu que é inútil tentar mudar as condições, e os indivíduos devem ajustar-se ao status quo(...)” Você concorda com esta afirmação? Por quê?
6-) Quais são as razões pelas quais, os sociólogos nos últimos anos, são contrários a concepção evolutiva da sociedade?